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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

AKIRA (1988)

Dentre os inúmeros filmes em animação de que eu tenho conhecimento, poucos possuem tamanha relevância e poder de manterem-se atuais quanto Akira.

E isso porque acidentalmente esse longa-metragem foi consequência de uma série de eventos de caráter sócio-político de influência global, e porque quase instintivamente seu autor absorveu essa informação e traduziu em uma linguagem pop/cult que permanece até hoje moderna cada vez que o filme é assistido.
A obra em questão foi adaptada de uma série de quadrinhos homônima pelo próprio quadrinhista que a realizou. O japonês Katsuhiro Otomo, nascido em 1954 fez parte da geração que vivenciou o cenário caótico da reconstrução do Japão pós Segunda Guerra, acompanhou os movimentos sociais de protesto ao longo dos anos 60, a ainda a paranóia em decorrência da Guerra Fria.

Após alguns trabalhos em forma de One-shot (HQs cuja história se encerra em apenas uma edição) ele começava a ganhar notoriedade com o lançamento da aclamada série quadrinhística “Domu, A Child’s Dream”, e com isso adquiria experiência para tentar um projeto maior.
Sendo lançado em 1982, o mangá Akira soou praticamente como uma resposta à eleição de Ronald Reagan nos EUA um ano antes, com sua política agressiva que voltava a acender o conflito com a URSS.

Obtendo enorme sucesso, à medida que seu enredo era desenvolvido a possibilidade de uma versão em animação tornava-se algo real.
Naquele contexto, a guerra nuclear era visto como algo iminente para a população, e exercia um efeito mais apavorante no povo japonês, ainda sem conseguir cicatrizar a memória de Hiroshima e Nagasaki.
Sendo assim, podemos dizer que Akira (tanto os quadrinhos quanto o filme) foi algo ousado desde o início.
A partir do começo devastador do filme, Otomo constrói seu cenário cyberpunk pós-apocalíptico repleto de citações à realidade dos anos 80, e expectativas sombrias com relação ao futuro após essa nova guerra.
O movie funciona assim como um espelho distorcido daquele período histórico, desde os grupos revolucionários, até a corrupção arraigada na política, passando por questões como delinquência juvenil (órfãos devido à guerra), a atuação do exército no governo, desemprego, entre tantos outros aspectos que se tornam visíveis ao longo da metragem.

Mas pra quem pode estar pensando: “esse deve ser só um daqueles cults intelectualóides sem ação”, fico feliz em desapontá-los.
O ritmo da trama nas cerca de duas horas de filme é de uma contagem regressiva desenfreada e brutal, e o diretor não faz concessões. Não há necessariamente heróis ou aquela tranquilidade de saber que os protagonistas são intocáveis no decorrer da história. Diante do complexo e tenso enredo criado, o que são pessoas além de números na contagem final de vítimas?

Os elementos técnicos também merecem uma análise à parte.
A trilha sonora foi composta pelo grupo Geinoh Yamashirogumi, que a pedidos do diretor teve o desafio de criar um estilo musical que não estivesse preso a nenhuma cultura ou época. O resultado só vendo o filme pra entender.
Elementos com a violência e o embate entre homem X máquina X paranormalidade também são constante na obra do autor, e auxiliam na elaboração de um universo tão singular, apesar das semelhanças com nossa realidade.

O uso do prescoring, em que as falas dos dubladores são gravadas antes da animação das cenas era uma novidade até então, e garantiu uma extrema fluência e sincronicidade na movimentação labial dos personagens.
E isso sem mencionar a técnica de animação, que superior à maioria dos longa-metragens lançados após, deixa claro todo o comprometimento do autor com sua obra, em uma época em que desenhos animados ainda eram feitos rigorosamente quadro-a-quadro, e a Disney e a Hanna-Barbera ainda reinavam absolutas, já demonstrando um certo comodismo com a situação.
Acontece que Akira mudou esse panorama.


O seu lançamento foi um dos grandes responsáveis pela abertura do mercado cinematográfico americano para os animes, obtendo ampla aceitação da crítica e do público, e mostrando através do seu traço menos estilizado que os desenhos animados japoneses ofereciam outras possibilidades.
Sendo frequentemente comparado com “Blade Runner”, “Mad Max” e outros trabalhos de referência da ficção científica, seu êxito possibilitou inclusive a publicação de sua série em quadrinhos (a primeira colorida digitalmente) no ocidente.

A soma dessas e de outras características inerentes ao filme visivelmente o torna uma exceção no que concerne ao cuidado com o desenvolvimento e caráter inovador.
Elevou o seu autor ao nível dos maiores escritores de ficção científica do mundo, recebendo elogios de caras como Kurosawa, Moebius e Warren Ellis, e influenciando inúmeras gerações de artistas que viram tanto filme quanto HQ quebrarem convenções e estabelecerem novos limites para as abordagens cinematográfica e quadrinhística.



Akira funciona assim como um retrato que se modifica de acordo com a leitura que se faz da obra, de acordo com quem observa e analisa seus questionamentos. Atemporal e singular, provou ser muito mais que um desenho animado, que nessa definição perderia muito do seu poder de abrangência e impacto.

Há mais de duas décadas quando foi lançado, teve seu significado expresso pelas referências ao contexto em que foi realizado. Dez anos depois, quando eu o assisti isso permaneceu. E mês passado, quando pude rever no cinema, percebi que o tempo não o deixou ultrapassado em qualidade de animação ou amplitude de sua mensagem.


Underground, pop, contracultura, ficção científica, horror, ação, e uma pitada de crítica, humor negro e ironia.


Akira é simplesmente um clássico.
E isso resume tudo.


Quanto vale:


Akira
(Akira)
Direção: Katsuhiro Otomo
Duração: 124 minutos
Ano de produção: 1988
Gênero: Ficção científica/Ação

2 comentários:

Anônimo disse...

Se hoje eu admiro (boa) ficção científica, é por culpa de obras como o Akira, que junto com Blade Runner, Neuromancer e outros, se tornaram verdadeiros clássicos.

Marcel Ibaldo disse...

Com certeza, Fernando.

Ainda hoje, com as inúmeras possibilidades da tecnologia CG são raros os casos de obras que se igualem a esses e alguns outros exemplos de Sci-Fi que fazem parte da história como verdadeiros ícones, e cuja influência permanece nas mais variadas mídias, comprovando não apenas o seu poder visual mas também a relevância da mensagem contida em suas histórias.